Esperas e Largadas de Toiros


ESPERAS DE TOIROS E RECORTADORES

Carlos Fernando Alvarenga
Aficionado

Resumo


Este texto é baseado na experiência de vida do autor que desde muito jovem viveu todas as emoções e vicissitudes das Esperas de Toiros no Ribatejo, particularmente em Vila Franca de Xira, onde sempre viveu. O autor regressa às origens deste festejo taurino, no início uma necessária passagem de Gado Bravo pelas ruas de algumas localidades de uma forma mais discreta e reservada, e toda a evolução para um evento cultural massificado e da maior importância sociocultural e económica de cada localidade. As origens das Esperas de Toiros são descritas tendo por base as vivências e testemunhos de Campinos, Maiorais e aficionados da época, assim como documentos históricos (livros, cartazes, azulejos, pinturas) que atestam a veracidade dos relatos. Toda a evolução das Esperas de Toiros até ao modelo atual são consequência de adaptações necessárias a cada época e desde sempre fomentaram a interligação entre povos e dinamizaram a parte sociocultural de cada localidade.


Palavra-chave: Espera de Toiros, Recortadores, Tertúlias, Festejo Taurino.


Introdução


São os dias mais esperados do ano, a população aguarda com paciência a chegada das festas da terra, onde o ponto alto e mais aguardado são sem dúvida as Esperas de Toiros. Esse momento, no qual se mistura a nostalgia do passado, a parte social do presente e a perspetiva do futuro com a nova geração que acompanha os pais, é um evento importante na vida sociocultural da população. As Esperas de Toiros são uma reconstituição adaptada ao nosso tempo da passagem do gado bravo desde o início do Sec. XX, onde os campinos e maiorais transportavam o gado até Lisboa, quer para as touradas que se realizavam na Capital, ou simplesmente para o matadouro.


As Esperas de Toiros


O transporte de gado bravo para as praças de Lisboa (fados e vários livros de história contam-nos o ambiente das “esperas de toiros nas hortas” de Lisboa e a subida do gado pela calçada de Carriche), Vila Franca de Xira e, no século XIX e início do século XX, Alhandra, sempre foi um trabalho bastante árduo e complexo antes da construção da Ponte Marechal Carmona. Até à construção da ponte em 1951, o gado que pastava na margem esquerda atravessava o Rio Tejo a nado perto de Valada do Ribatejo (Cartaxo). Os campinos pernoitavam na margem sul do rio, aguardando o momento da maré baixa, para assim iniciarem essa difícil e perigosa tarefa de passar todo o gado para a margem norte. Escolhiam a melhor zona para o fazer e já dentro de água algumas bateiras auxiliavam nessa tarefa, acompanhando a manada pelas laterais e conduzindo assim até à outra margem. Os campinos a cavalo vinham na parte de trás, também a nado. Por vezes o transporte complicava-se, por algum animal se começar a afogar ou a desviar-se do grupo principal. Era então que os homens nas bateiras, com cordas, evitavam essas situações. Quando chegavam à margem direita, um grupo de campinos já os esperava e indicava o melhor local para a subida para a margem. Nesse sítio voltavam a pernoitar e a descansar para o percurso final até às praças de toiros. Esse itinerário final também tinha algumas dificuldades, pois teriam de passar perto de várias povoações até à capital, ou dentro delas no caso de Vila Franca e Alhandra.

Para minimizar esse perigo os campinos, a maior parte das vezes, faziam o trajeto ao anoitecer, para minimizar o contacto com a população. No caso de Vila Franca, o percurso escolhido era quase sempre junto à linha de caminho de ferro até chegar à vila, onde por vezes o gado encaminhava-se por outras ruas mais centrais. Mas a dificuldade maior vinha de alguns rapazes mais afoitos e desafiadores que tentavam aproveitar esse momento para se aproximarem da manada e, por vezes, criavam alguma distração para assim separar e dividir o grupo de toiros e cabrestos e poderem desafiar algum toiro isolado do resto da manada. Estas situações imprevisíveis, a cada passagem do gado por estas Vilas, provocavam em muitas ocasiões o desordenamento da manada, a consequente fuga de toiros e o aumento do perigo na viagem até à praça. Os campinos bem tentavam evitar esses encontros e atravessavam as Vilas de noite, iluminados com archotes, mas mesmo com essa prevenção, esses acontecimentos surgiam e em algumas situações os toiros só no dia seguinte era recapturados. Uma das situações mais conhecidas foi a fuga dos 8 toiros destinados a uma Tourada e os campinos demoraram vários dias para voltar a localizá-los.

Já nos casos dos toiros destinados às praças de Lisboa ou Algés, o trajeto fazia-se a norte das localidades, por caminhos rurais até às hortas e à calçada de Carriche. Para além das esperas nessas áreas em noites de boémia e diversão, ao passar junto às já referidas populações os campinos tinham de estar atentos aos movimentos dos moços que os iam esperar para tentar “sacar” algum toiro e trazê-lo para as vilas, gerando o caos na condução da manada, por um lado, e o frenesim na terra onde desafiavam o animal.

A fuga de toiros era algo recorrente por esta altura, até mesmo no quotidiano das populações, nomeadamente toiros que fugiam aquando do transporte para o matadouro e toiros que atravessavam a nado o rio ou saíam das cortes a Norte, vindo dos campos da Lezíria e entrando em Vila Franca e Alhandra, criando o pânico e o medo na população, mas também para gáudio entre os homens e jovens mais desafiadores do perigo que acarreta encontrar um toiro no meio de uma rua e de forma completamente espontânea. Em algumas situações, os toiros demoravam dias até serem localizados e reagrupados com o jogo de cabrestos conduzido pelos campinos que mais tarde vinham à procura do animal foragido do campo. Depois de construída a ponte de Vila Franca seria através do tabuleiro da mesma que os campinos a cavalo passaram a atravessar o rio. Até então, a passagem pelas povoações era completamente livre de barreiras ou obstáculos, mas com os inúmeros casos de toiros foragidos da manada, passaram-se a colocar carros e carroças, assim como algumas barreiras que pudessem evitar que pelo menos não fugisse nenhum toiro dentro da Vila. Mas naquele dia da fuga dos 8 toiros, e consequente cancelamento da tourada à qual se destinavam, foi necessária uma mudança mais profunda e encontrou-se uma melhor forma de conduzir o gado sem correr tantos riscos, quer para os campinos, quer para a população. Surgiam as tranqueiras, barreiras feitas em madeira, com 3 traves na horizontal, que evitavam a fuga do toiro e até auxiliava a escapada dos jovens mais desafiadores, assim como permitia à população em geral assistir à passagem dos toiros com muito mais segurança. Durante todo este período, a maioria da população convivia com as gentes do campo e grande parte das pessoas que habitavam nas Vilas tinha direta ou indiretamente ligação ao campo, quer por lá trabalhar quer por algum familiar ou amigo. Desde sempre que esta ligação do campo à metrópole foi um factor social e económico de extrema importância. Desde a criação do sistema de tranqueiras, a passagem de toiros pelas vilas deixou de ser apenas uma tarefa agrícola necessária e transformou-se num espetáculo sociocultural de massas que vinham de propósito à Vila para assistir ao vivo a esse evento de uma rara beleza visual e emotivo por imprevisível, onde o campo entra na cidade e rompe com todo o quotidiano urbano da mesma, trazendo emoção e vida às ruas, em contraste com o resto do ano de vida pacata e privada desse vibrante acontecimento. Com a implementação generalizada de tranqueiras pelas ruas de Vila Franca e desde essa mudança importante, várias localidades (às já referidas haverá que juntar a Moita do Ribatejo, Alcochete, Montijo, Azambuja, Arruda dos Vinhos, Santarém e outras) passaram a ter nos dias mais importantes das suas festas um ponto alto que é a reconstituição das antigas travessias de gado bravo. Outras povoações, que nem sequer eram atravessadas pelo gado bravo, passaram também a adotar e a incluir nos dias grandes de festa as Espera de Toiros nos seus programas, e assim atraíam visitantes, criando um fenómeno sociocultural importante nesses dias. Algumas terras designaram o ritual como passagem ou entrada de toiros. Em Vila Franca de Xira, terra onde sempre existiram mais sobressaltos na travessia do gado e onde os mais destemidos mais desafiavam o perigo dos toiros e os desencaminhavam para depois poderem “brincar” com algum toiro isolado, designou-se de Espera de Toiros. Assim, cada terra apelidou o evento de maneira diferente, “Espera”, “Passagem” ou “Entrada” de toiros, mas todas são no fundo a reconstituição das antigas travessias de gado bravo.

Com a mudança tão importante da generalização das tranqueiras nas ruas, os organizadores locais decidiram incluir um novo evento e assim prolongar o tempo dos toiros nas ruas para satisfazer o público que assistia ao evento em busca da emoção e do imprevisto. Além da espera de toiros, que no início não era mais que alguns jovens corajosos e desafiadores que se colocavam em algumas ruas à “espera dos toiros” para alguma aventura taurina imprevista, criou-se a largada de toiros. Se a “Espera de Toiros” tinha uma vertente recreativa e era uma reconstituição das antigas travessias, a largada de toiros aumenta o tempo do evento cultural e de certa forma também reconstitui aquelas travessias mais acidentadas e imprevisíveis em que fugiam toiros. Com a largada de toiros e consequente aumento do tempo de permanência dos toiros na rua, também aumenta a emotividade e espontaneidade do espetáculo, o qual do ponto de vista sociocultural e económico é uma mais valia para a terra. Mais povo se desloca para assistir e maior é o intercambio de culturas e gerações. Com a maioria do público em segurança, o aumento de espectadores é evidente e as “Esperas de Toiros” passaram a ser um evento de massas e o mais importante dentro do programa de cada festa e de cada terra. Passou a ser um evento organizado e devidamente programado e dos mais aguardados dentro do calendário anual de cada terra. Podemos até estabelecer uma comparação com um dos festejos taurinos mais conhecidos do Mundo, os “Encierros de Pamplona”. Desde o Séc. XVII que os toiros vindos de campos longínquos do território espanhol, aguardavam nos arredores de Pamplona para na manhã seguinte entrarem pelas ruas na capital de Navarra e serem lidados na Praça de Touros. Durante muitos anos, era até proibido e punido com coimas pesadas quem corresse ou distraísse os toiros nesse trajeto, mas o “Encierro” foi-se transformando num evento taurino popular, massificado e universal. O que era apenas uma tarefa agrícola de transportar o gado bravo pelas ruas de uma localidade, evolui para o festejo taurino mais conhecido do Mundo. Simultaneamente, devido a esse festejo popular, as festas de “San Fermín” são atualmente as mais famosas do Mundo. Algo semelhante sucedeu com as Esperas de Toiros no Ribatejo, não só do ponto de vista popular e cultural. Já com uma transformação económica significativa nos centros urbanos, foi também este evento cultural que permitiu a ligação das vilas e cidades ao campo e às tradições agrícolas, permitindo assim manter essa sintonia até aos dias de hoje. Ao largo de várias décadas, estes festejos populares inspiraram escritores, pintores, poetas e outros artistas que criaram obras de arte sempre com a figura central, o touro, como elemento predominante na cultura destas regiões. Podemos contemplar várias obras de arte inspiradas nas “Esperas de toiros”, por exemplo os painéis de azulejos pintados à mão e que ilustram a vida no campo e nas vilas e a emoção que sempre trazia quando o campo irrompia pelo quotidiano urbano. Em várias localidades podemos vislumbrar esses painéis de azulejos em Estações de Comboio, Mercados Municipais e outros locais públicos, azulejos esses que retratam as situações de perigo e as peripécias que decorriam desses festejos populares. Podemos ainda evocar vários quadros pintados, por exemplo, por José Noel Perdigão ou por Júlio Pomar, para apenas citar dois exemplos.

Depois da consolidação das “largadas de toiros” como evento principal nas festas de cada localidade, surgiram mais jovens que se atreviam em desafiar e “brincar” com os toiros soltos nas ruas de cada terra. Se antes, nas travessias, eram apenas alguns populares que tentavam a sua sorte na expectativa de conseguir algum momento mais emocionante, agora, com o prolongamento do tempo dos toiros na rua, a oportunidade para o desafio também aumenta. A existência de tranqueiras, o maior número de pessoas por perto que podem auxiliar em caso de algum acidente, como uma voltereta ou cornada, bem como o elevado número de espectadores que assistiam à largada de toiros, fazem emergir vários jovens que sonham não só em “brincar” com os toiros, mas simultaneamente conquistarem uma carreira como toureiros. Assim, as largadas de toiros passaram também a ser a antecâmara para muitos jovens com ambições taurinas.

Numa altura em que não existiam Escolas Taurinas e as oportunidades para tourear em Ganaderias e no campo eram raríssimas, as largadas de toiros foram um terreno perfeito para muitos jovens tentarem a sua sorte, demonstrarem a sua valentia e coragem e os seus dotes artísticos, com uma exigência acrescida, a do muito público que assistia ao festejo. Foram bastantes os jovens que mais tarde abraçaram uma carreia taurina profissional, como toureiros, novilheiros ou bandarilheiros. Cada vez mais, estes festejos populares foram ganhando dimensão e, se no início eram apenas 2 ou 3 toiros e zonas restritas, com o passar dos anos e com a maior afluência de público, as organizações viram-se obrigadas a ampliar quer as áreas das largadas, aumentando o número de ruas, quer o número de toiros. Se Vila Franca foi uma das terras pioneiras na criação destes festejos, organizando-os e ampliando o seu impacto e visibilidade, nas décadas de 70/80 as principais localidades do Ribatejo também seguiram o exemplo e já tinham estes festejos bem organizados e oficializados nos seus programas de festas. Ao longo das últimas décadas, praticamente todas as localidades do Ribatejo têm algum tipo de festejo taurino popular, de dimensões e características diferentes, algumas com a inclusão de tradições vindas de outras regiões, como a “tourada à corda”, “pamplonas” ou “encierros”, mas todas com algo em comum, o elemento fundamental e principal que é o touro. Ao longo de quase um Século podemos imaginar de forma praticamente infinita o número de ligações que se criaram através destes festejos taurinos, desde ligações familiares, até às sociais e económicas, passando pela ligação do campo à cidade e a quantidade de eventos paralelos que estes festejos têm criado ao longo dos anos, nomeadamente as Tertúlias.


As Tertúlias


Se no passado, os populares e aficionados se juntavam em tabernas e cafés da Vila para conversarem sobre o quotidiano ou sobre algum assunto em particular, ao longo dos anos, e particularmente desde a década de 80, o número de tertúlias tem vindo a aumentar e nos últimos anos tem praticamente duplicado o número de espaços particulares ou públicos destinados à convivência taurina, em resultado da necessidade de um grupo de amigos encontrar um espaço mais reservado para conviver e festejar as festas de cada terra, quase sempre em sintonia com o meio rural e taurino mas dentro do espaço urbano. As tertúlias são um espaço quase sempre ligado a um grupo de pessoas que na sua maioria apreciam festejos taurinos. Alguns podem não ser apreciadores, mas respeitam e aceitam esta tradição, fundamentando assim a boa convivência em sociedade e o respeito mútuo entre pessoas, muitas de ideologias politicas opostas, clubes de futebol diferentes e outras paixões divergentes, mas que no ambiente Tertuliano colocam essas diferenças em segundo plano. O fator taurino ajuda à sana confraternização entre pares. Se no passado eram os cafés e tabernas a acolheram este espírito de convívio, com o surgimento das tertúlias ficou patente a importância das mesmas no panorama social de cada terra. Através das tertúlias, aumentou-se a interligação entre pessoas, e promoveu-se de forma espontânea a confraternização e a troca de conhecimentos quer dentro das mesmas, quer entre tertúlias diferentes. Dentro do ambiente festivo das próprias festas, as tertúlias ajudam a integrar forasteiros, visitantes e turistas que assim encontram sempre alguém que ajuda à integração dos mesmos dentro do espírito da festa.

São também espaços de representação taurina, acolhendo vastos espólios tauromáquicos. Algumas tertúlias são autênticos museus, pois albergam um património importante, quase sempre ligado ao mundo taurino e às “Esperas de Toiros”, mas também às memórias do trabalho no campo. Quase sempre decoradas com fotos antigas, asa tertúlias mostram às gerações mais novas os primórdios dos festejos populares de rua. Essas fotos de “Esperas de Toiros” de outros tempos, revelam ruas sem tranqueiras, para espanto dos aficionados mais jovens ou dos que desconheciam por completo as origens das atuais Esperas de Toiros. Essas fotos antigas da passagem dos toiros pelas ruas da Vila são também um estímulo para conversas que recordam tempos passados, desde o local onde foram captadas, e ajudam a conhecer outros modos de vida, alguns já inexistentes, trazendo recordações de como era o quotidiano da Vila nesses tempos. Ajudam também a conhecer as características dos edifícios antigos da terra, alguns remodelados e outros já demolidos.

São essas fotos das esperas de toiros que em variadíssimas ocasiões recordam estórias antigas relacionadas com acontecimentos taurinos, como colhidas de algum popular ou a entrada de um toiro pelas escadas de algum prédio. Assim, ao longo dos tempos todas essas vivências se vão perpetuando e passando de geração em geração. É através dessas fotos que muitas vezes recordamos pessoas ou famílias que fizeram parte do passado da Vila e lugares importantes na época e agora já inexistentes, como cafés, escolas, fontes, mercearias, carvoarias e até gasolineiras. Todas estas fotos são retratos vivos de épocas passadas e nas quais os jovens podem reviver de certa forma a cultura desses períodos. Com o aumento do número de Esperas de Toiros e consequente aumento de público e ruas abrangidas pelas largadas de toiros, foi também crescendo o número de tertúlias.

Se até à década de 70 existiam as charretes, calestras e tipóias engalanadas que na sua maioria vinham do campo até à Vila com trabalhadores agrícolas para viverem a festa e desfrutarem do merecido descanso laboral, podemos estabelecer um paralelismo e afirmar que já nessa época essas charretes eram uma espécie de pequenas tertúlias itinerantes servindo para a confraternização dentro da festa. As tertúlias contemporâneas, de certa forma, substituíram essas charretes e tipóias, adaptando-se assim ao mundo atual, onde o trabalho agrícola passou a ser realizado quase de forma industrial. Além disso, uma tertúlia num espaço amplo e no centro da cidade oferece uma maior comodidade. Muitas tertúlias nasceram com a finalidade de festejar em grupo as festas da localidade, mas paralelamente acabam por criar vários eventos e convívios ao longo do ano e mesmo fora dos dias festivos. As Esperas de Toiros são também a origem do nascimento de muitas tertúlias, quer pela finalidade para que foram criadas, quer até mesmo pelo nome que é quase sempre inspirado em elementos taurinos. A cultura taurina é tão importante no ambiente das tertúlias que se promovem debates ao longo do ano sobre vários temas taurinos e com convidados ligados à Festa Brava. As Esperas de Toiros são possivelmente o ritual mais importante para uma tertúlia, o que também se vê pela localização geográfica, sempre que possível próxima ou mesmo inserida nas ruas onde se realizam as largadas de touros, podendo assim os tertulianos estar mais próximos da emoção da festa. É também um local onde muitos se encontram antes e depois da Espera de Toiros e onde se conversa sobre as incidências vividas durante o festejo, mantendo assim vivo o ambiente sociocultural entre gerações, entre locais e visitantes e entre a população no geral. As tertúlias são o retrato vivo da importância e da influência que as Esperas e Largadas provocam ao longo de décadas na forma de vida das populações, mesmo em períodos sem festas a decorrerem, promovendo assim a convivência entre grande parte da população. Atualmente, o aumento do número de Tertúlias tem também ajudado à requalificação de alguns edifícios antigos ou mesmo devolutos no centro histórico de cada localidade, simultaneamente oferecendo mais animação nas zonas mais centrais, cada vez mais desabitadas.


Os Recortadores


Se até à Década de 80 foram surgindo alguns jovens que iniciando-se nas Esperas e Largadas acabaram seguindo carreiras profissionais na tauromaquia, é a partir da Década de 90 que o número de participantes ativos aumenta significativamente. Até esse momento, eram os Campinos e Maiorais a cavalo os principais protagonistas das largadas e alguns espectadores espontâneos que “brincavam” com os toiros de uma forma mais arcaica e com pouca técnica, muitas vezes recorrendo a objetos (cartazes, papelões, chapéus de chuva, etc.) para enganar o toiro e escapar do perigo. A partir da Década de 90 foram surgindo alguns jovens que, movidos pela paixão pelos toiros e também em busca do desafio e do perigo que envolve estes festejos, foram ganhando bastante notoriedade nas largadas de toiros: os “recortadores”. O número foi aumentando consideravelmente, os mais jovens assistiam aos recortadores a “passarem” pelo toiro entre o misto de perigo, mas paralelamente também de satisfação, e com o decorrer dos anos eram já muitos os jovens que “brincavam” com os toiros, arriscando cada vez mais. Atualmente, o número de jovens que brincam com os toiros aumentou exponencialmente, devido a toda uma geração que cresceu a assistir a outros “brincarem” com os toiros, assim como em alguns casos por razões familiares, passando esta prática e o ensinamento por laços familiares ou de amizade. São já muitas dezenas de jovens que no Ribatejo “brincam” com os toiros, utilizando várias técnicas muito mais refinadas e exigentes em relação aos aficionados da Década de 80. O toiro atual também assim o exige, por ter mais trapio e seriedade e sendo muito mais exigente que os toiros escolhidos para os festejos de rua de décadas passadas. Os jovens recortadores que hoje “brincam” com os toiros possuem melhor condição física e uma técnica mais aprimorada. Geralmente estão bastante treinados, afinando a técnica e preparando o corpo quase diariamente, incluindo fora dos períodos taurinos. Simultaneamente, o acesso fácil à informação e a vídeos de outros países, nomeadamente aos recortadores espanhóis, ajudaram bastante a aperfeiçoar este tipo de atuação taurina em Portugal. A notoriedade e o elevado número de jovens envolvidos nos recortes de rua alavancou esta prática taurina e transportou-a para eventos em Praças de Toiros, já com público pagante, assim como em transmissões televisivas para grandes audiências.

Se em outras épocas o público deslocava-se para assistir à passagem e mais tarde também às largadas de toiros, hoje, sendo o toiro, e continuando sempre a sê-lo, a figura mais importante das Festas Tradicionais no Ribatejo e algumas localidades do Alentejo, nota-se uma enorme afluência de público jovem para participar de forma direta ou apenas assistir aos momentos dos recortes nas largadas de toiros. São estes participantes mais jovens que ampliaram ainda mais a notoriedade das Largadas de Toiros, que por si só são um festejo que atrai muitíssimo público. São todos estes jovens “recortadores” os que em todas as largadas desafiam e arriscam a vida movidos pela paixão pelos toiros e aportam mais emoção ao festejo, desde o inicio até ao seu término. O número crescente de público cada vez mais jovem também propicia uma maior interligação entre gerações e, em muitos casos, acabam por se criar fortes laços de amizade fora do âmbito taurino, assim como uma competência entre jovens de várias regiões ou mesmo dentro do mesmo grupo. São muitos os valores morais e sociais envolvidos e que por vezes não saltam à vista da sociedade, que cada vez mais comporta pessoas isoladas, individualizadas e quase sempre focadas apenas no consumo ou nos bens materiais. Neste festejo taurino, que em média demora 2 horas, podemos encontrar variadíssimos valores morais e qualidades humanas desprovidas de qualquer interesse comercial ou financeiro. Falamos do saudável convívio antes, durante e depois de uma largada de toiros, do desafio e da valentia ao enfrentar o medo e superar os obstáculos, entre os que mais arriscam ou apenas os que se aproximam dos toiros, do altruísmo, da verdade e dedicação dos amigos que perante um percalço ou uma colhida grave arriscam também a vida para salvar um companheiro, ou apenas um conhecido, em alguns casos até um popular anónimo. O importante é a entreajuda para salvar alguém em apuros. As Esperas e Largadas são também o momento ideal, por vezes o único durante todo o ano, para os mais jovens terem contacto direto com o campo e com as tarefas agrícolas. O ambiente taurino é também uma escola de vida, com vários ensinamentos saudáveis para a sociedade, até a de respeitar o animal e admirando toda a sua beleza e força física. Ao longo de vários anos, o que começou apenas por ser uma rápida passagem de gado bravo pelas ruas de algumas localidades, transformou-se num evento taurino de massas e em várias Cidades e Vilas chega a ser mesmo, e por muita diferença, o evento com mais público a assistir e também por isso o evento mais importante do programa das festas de cada localidade e, por extensão, dos dias mais importantes no Ribatejo. Os dias de Largada de Toiros são também um ritual para milhares de aficionados ou púbico em geral, para os que vão a muitas ou apenas a algumas devidamente selecionadas. O ritual de naquele determinado dia, naquela rua e localidade, todos os anos marca presença e convive com os habitantes dessa localidade. As largadas de toiros no Ribatejo são sem dúvida um dos eventos culturais que mais fomentam a sociabilidade entre gerações e população da mesma terra, assim como entre localidades vizinhas, pois um enorme número de pessoas se desloca às terras próximas ou mais longínquas para assistir aos festejos taurinos que em outros locais ocorrem. Depois de algumas adaptações e num mundo cada vez mais tecnológico e concentrado nas grandes metrópoles e espaços comerciais, a Largada de Toiros é um dos últimos redutos de convivência com o passado, elevando os melhores valores morais e a saudável convivência da população dessas regiões.



Espera de Toiros

Numa descrição formal, uma espera de toiros é um ritual em que as pessoas de uma localidade esperam para ver passar nas ruas uma manada de toiros e cabrestos, conduzidos por campinos e lavradores a cavalo, até uma praça de toiros ou outro local onde são encerrados. A multidão que espera, uns protegidos por tranqueiras que os separam dos animais, outros aproximando-se deles tanto quanto possível de modo a sentir-lhes a proximidade, participa com incitamentos entusiásticos. Depois da espera, em muitos dos locais referidos, realiza-se a “largada de toiros”, que faz parte do conjunto ritual. Os toiros são largados, um a um, para zonas previamente definidas nas ruas vedadas com tranqueiras.

Na verdade numa espera seguida de largada de toiros não se pode ficar só a assistir. A alegria é contagiante e o espírito festivo inebriante, tanto mais quanto mais se beberrica vinho ou cerveja com os amigos que, de todas as partes do mundo, regressam religiosamente todos os anos às origens para fazer renascer o sentido da comunidade que une os que ficaram aos que partiram. E onde se ousa pisar terrenos de risco controlado pela prudente distância em relação ao animal que toma conta do espaço que antes era a rua da vila ou cidade. Provando o sabor do medo, que anda junto com o riso e a alegria.

São dezenas de milhares, em cada local, as pessoas que se colocam nas tranqueiras, em segurança, enquanto centenas que estão dentro fogem em direção às mesma ou a um outro refúgio quando o toiro investe na sua direção. Mas alguns dos presentes são figuras populares das largadas, “brincam” com os toiros recortando-os ou lanceando panos ou pedaços de cartão que servem de improvisadas muletas ou capotes (Capucha, 1990).

Largada de Toiros

Ao fim de um determinado tempo na rua, os campinos recolhem os toiros auxiliados pelos seus jogos de cabrestos, voltando as pessoas a vibrar com a manada em tropel.

Como se percebe, trata-se de um fenómeno urbano, que acontece quando o campo, representado pelos toiros, pelos cabrestos, pelos campinos e pelos cavalos, invade a cidade, suspendendo e invertendo as suas regras e estruturas regulares, recreando uma espécie de caos festivo, à semelhança do que acontece com o carnaval. O espaço público urbano é tomado pela imprevisibilidade das investidas dos toiros e pela multidão comportando-se como uma turba humana em estado de euforia. Como todas as situações de desordem social – neste caso codificada pela ética da festa - não deixam as esperas de ter alguma ordem, nomeadamente quando se trata da entreajuda solidária entre as pessoas face ao perigo que o toiro representa e à ação dos mais destacados aficionados, os jovens peritos em recortar e “brincar” com os toiros.

O tempo das esperas e das largadas é, então, o tempo de transgressão e de suspensão das regras do dia-a-dia. Os sinais de trânsito que normalmente dão ordens, são apontados ao toiro como alvo a abater. As ruas onde cada carro circula ordenadamente pela sua mão, tornam-se local de presença desordenada, cada qual em tropelia procurando o caminho da sua proteção. Em vez do “bom dia”, “com licença” nos passeios, soa o grito “eles aí vêm!” quando estralam os foguetes. No espaço normalmente ordenado e racional, embora mais ou menos buliçoso, da rua, instaura-se o espaço mais ou menos caótico da desordem festiva e das suas regras emotivas. Se no quotidiano cada um que ali passa, passa transportando um estatuto social e económico próprio, prosseguindo os seus interesses pessoais, quem lá está nas esperas, está em comunhão e solidariedade com os seus pares, todos iguais. É assim que o toiro a todos arruma na mesma condição de humanos iguais na sua condição natural, trazendo a comunidade de volta à “origem” mítica da igualdade genesíaca e natural, que o dia-a-dia da sociedade desmente ao instituir sistemas de papéis diversificados e desigualdades sociais de vários tipos.


PROGRAMAS/CARTAZES 2019


  • Área Metropolitana de Lisboa


  • Lezíria do Tejo


  • Alentejo Central


  • Alto Alentejo


  • Oeste


  • Baixo Alentejo



REGISTOS FOTOGRÁFICOS


Largada de Toiros na Feira da Azambuja (2019)[1]



REGISTOS VIDEOGRÁFICOS




REGISTOS DOCUMENTAIS ESCRITOS




BIBLIOGRAFIA CITADA

Capucha, Luís (1990). O caos na ordem urbana: cultura popular e vivências coletivas em Vila Franca de Xira. Colóquio Viver (n)a Cidade – Comunicações. Lisboa: LNEC/CET, pp. 59-64.

Capucha, Luís e Marco Gomes (2016). "Tauromaquia, Cultura com Sabor de Festa". In LNEC - CRIA (Ed.), Congresso Ibero Americano Património, suas Matérias e Imatérias, Lisboa.


Referências/Notas
  1. Fotografias tiradas pela equipa do projeto no dia 02/06/2019 na Feira da Azambuja.