Origem


O TOIRO DE LIDE COMO BASE DE UM PATRIMÓNIO CULTURAL IMATERIAL DE PORTUGAL

António Vasco Lucas
Médico Veterinário / Secretário-Técnico da A.P.C.T.L.

A génese taurófila perde-se no tempo, consubstanciada que está em séculos de existência, desde as imemoriáveis épocas das caçadas aos descendentes do uro, passando pelo exercitamento guerreiro, sujeição aos trabalhos de arroteamento, etc., até à transposição dessas lides em recintos fechados para gáudio das gentes.

A evolução dessa actividade, ordenada já em espectáculo, decorreu paralelamente à selecção e transformação do bovino bravio, até chegarmos ao ballet vivo, mescla de arte e emoção que é o toureio actual, alicerçado num animal que, não perdendo as suas características de investida, susceptível de ferir e até matar, permite, entretanto, ser enganado, ou melhor, submetido através de técnicas expressionistas.

Assim, o toiro de lide será o monumento mais assombroso que a moderna zootecnia conseguiu, já que a sua consecução não se resume apenas a tipo morfológico ou função fisiológica de exploração económica, como sucede nas outras raças, mas expressa sobretudo a selecção de um conjunto de caracteres psico-instintivos que traduzem um tipo de conduta, forma de comportamento e modo de reagir e atacar, factores que permitem o toureio contemporâneo.

O toiro de lide é um animal que responde de forma motora, ante um dado estímulo, determinando-se numa investida recta até esse objecto excitante, ou seja, exibe uma acometividade que define o carácter elementar de toda a complexidade comportamental, que não é se não a bravura. E quantas vezes se repete a estimulação, tantas vezes ele dará a resposta, residindo aqui a base da sua selecção. Logo, esta raça bovina não deverá ser encarada como as restantes, porque se trata de um produto manobrado geneticamente, nado e criado para um determinado fim – o enfrentamento com o homem, através de movimentos artísticos que fundamentam o toureio.

Assim, só se compreende a existência do bovino bravo, com toda a complexidade e perigosidade do seu maneio, porque existe o toureio e este só será possível pela existência daquele. É a ilação lógica, conforme à razão, o que significa em qualquer elucidário da língua portuguesa... legitimidade – a legitimidade da raça brava de lide e da actividade tauromáquica que ela permite.

Ora, se o toiro de lide em Espanha fixou os seus caracteres na segunda metade do século XVIII e daí se alterou, através duma exigência evolutiva do próprio toureio, a verdade é que tal não se verificou em Portugal, pois aqui continuava a imperar o jogo taurino em termos do combate cavaleiro-toiro, com o divertimento dos cães de fila, interrompido, de quando em vez, com o aparecimento esporádico de alguns diestros espanhóis que, então, nas velhas praças do Salitre e Junqueira, despachavam sem grande denodo os cornupetos lusitanos.

Assim, fixou-se um animal corpulento, poderoso, de formas bastas e córnea muito desenvolvida e engravitada, sendo possível que, embora de tronco étnico semelhante à andaluza, tenha havido um cruzamento com variedades do Norte, particularmente a Galega, e daí a dimensão da córnea, a investida tarda e defensiva, a coloração aldinegra, a saliência das orbitas e o perfil côncavo da cabeça.

Estes caracteres durante muitos anos não evoluíram, ao invés das castas espanholas, porque a modalidade de toureio, se é que o praticado se poderia designar como tal, não o exigia e também porque uma reforma política o contrariou. Referimo-nos à abolição da Lei dos Morgadios, efectuada em 1836 pelo ministro da Fazenda e da Justiça Mouzinho da Silveira, obrigando à repartição das terras e dos gados, levando às mãos de muitos aquilo para que não tinham sensibilidade, logo atrasando o processo selectivo do toiro de lide.

É nos finais do século XIX e princípios do século XX que o toiro bravio português começa a integrar-se no processo selectivo de adaptação à forma evolutiva do toureio, no sentido de ser dotado de bravura, nobreza e recorrido ou amplitude de investida. Por essas alturas a área de criação de toiros bravios podia dividir-se em quatro zonas; campos do Mondego, campos da Golegã, campos de Vila Franca de Xira e Azambuja e ainda o Alentejo.

Embora, esporadicamente e sem continuidade, tivesse havido um entendimento do processo selectivo que a evolução reclamava, casos de Rafael José da Cunha e da ganadaria do rei D. Miguel, é no final do século XIX, mais precisamente em 1883, que começa a evolução do toiro português na ganadaria Palha Blanco, mediante vários cruzamentos com 120 vacas portuguesas, apuradas dentre 500, após escrupulosa tenta, procedentes de Estêvão de Oliveira, Sousa Falcão e Marquês de Belas.

Daí em diante é contínua a evolução, merecendo referência os nomes dos pioneiros desse processo, rendendo-lhes assim justa homenagem: em 1889 El Rei D. Carlos e Vitorino Frois, seguindo-se-lhes em 1900 Luís da Gama, o Duque de Palmela em 1918, e Alves do Rio, Infante da Câmara e Pinto Barreiros em 1921.

Logo, a pouco e pouco, os sólidos cimentos da evolução ganadera foram-se constituindo entre nós, a tal ponto que a primitiva casta portuguesa, à excepção de 3 núcleos ainda existentes, foi totalmente modificada.

Fixados os caracteres do actual toiro de lide, verificamos que a antiga rês de estrutura basta e desigual, de estampa selvagem, alto de agulhas e de extremidades, forte de terço anterior e veleto de cornos, foi substituída por outra de silhueta recortada e pele fina, com garupa e lombo desenvolvidos, de pouca barbela e ventre reduzido, de grande precocidade e rendimento de carcaça e, ainda, o que é mais importante, de grande bravura, nobreza e suavidade na investida.

São estes animais que se agrupam, hoje em dia, num efectivo pecuário que ultrapassa as sete mil vacas de ventre, repartidas por 92 ganadarias activas, registadas no Livro Genealógico da Raça, com 24.000 animais vivos.

A raça brava, e em particular o toiro de lide, é actualmente o suporte duma função que, emanando beleza e emoção, atrai o público e ajuda muitos a viver, representando uma poderosa componente sócio-cultural e económica deste país. Duvidar destes factos é não querer ver a realidade, logo é com toda a justiça que devemos considerar esta raça como sustentáculo de um património cultural imaterial de Portugal.